sábado, 12 de fevereiro de 2022

PARA A MARLENE E A EUNICE EU TIRO O CHAPÉU

Nas décadas 1960 e 1970, em nosso querido Brasil, era muito difícil para as pessoas estudarem. O percentual de pessoas analfabetas era elevadíssimo. Poucos conseguiam cursar até o 4º Ano Primário, o equivalente atualmente ao ensino fundamental (séries iniciais 1º a 4º anos), cuja realidade que era mais cruel na zona rural.

Este drama foi vivenciado pelas famílias camponesas  residentes em São Lourenço. Alguns conseguiram concluir  o 4º ano primário. Uma boa parte fazia um ou dois anos e acabava evadindo da escola, até porque precisava trabalhar e ajudar nas despesas da casa. Outras porque as famílias (pais) destes alunos partiam do pressuposto que estudar não era necessário. Felizmente na Família Ribeiro, todos, sem exceção, valorizavam a escola e queriam que os seus filhos estudassem.

Mas em São Lourenço, concluído o 4º ano primário, o aluno não  tinha como continuar estudando a menos que viesse para a cidade de Dourados, cidade onde poderia continuar os seus estudos,  fazendo o curso ginasial, equivalente ao ensino fundamental (5ª a 8ª séries)

Em sendo assim, em São Lourenço, ter chegado ao 4º Ano Primário, significava ter chegado ao fim da linha.

Observação 01: além de não ser oferecido o curso ginasial na zona rural, quem desejasse  cursá-lo era obrigado a fazer uma prova denominada de admissão, tirar excelentes notas, obter uma classificação bem boa, como condição para  garantir uma vaga no ginásio ( era desta forma que as pessoas se referiam a a escola que oferecia de 5ª a 8ª séries). Esta prova de admissão nos faz lembrar os exames vestibulares, os quais, atualmente são exigidos para o aluno ingressar na universidade. Tudo isso porque o ginásio não era um curso universalizado, isto é, não havia vagas nas escolas para todos os alunos que concluíssem o curso primário.

Oportuno lembrar que na década de 1950, a Escola Rural Mista de São de Lourenço, era a única na zona rural, localizada em Caarapó a oferecer do 1º ao 4º ano primário. Em São Lourenço, em certa medida, as famílias camponesas eram privilegiadas, se comparadas com as demais escolas existentes até então na zona rural do município de Caarapó, porque nesta Escola era possível cursar até o 4º ano primário.


Estas duas primas, Eunice e Marlene, duas guerreiras

Pois bem, diante desse contexto quero relatar as proezas realizadas por Marlene Ribeiro e Eunice Daniel, meninas que surpreenderam positivamente a todos,  porque mesmo diante das dificuldades já enumeradas, não aceitaram tal realidade como algo imutável. Resolveram pois, cursar madureza ginasial (5ª a 8ª séries) pelo Instituto Universal Brasileiro.

Observação 2: se atualmente temos os cursos online(cursos a distância), podemos dizer que o curso de Madureza Ginasial, de certa forma foi o precursor desta modalidade. Claro que sem as facilidades que os cursos online oferecem, porque nestes o aluno tem acesso a vídeos, imagens e sites; pode também enviar mensagens ou recorrer a vídeo-chamadas, contactar-se com os seus professores, ainda que a distância, e tirar suas dúvidas.

Marlene e Eunice, muito determinadas e convictas do que queriam, foram a luta, e, heroicamente fizeram o referido curso. Pra quem não sabe, o curso de madureza ginasial era feito pagando uma mensalidade, isto é, uma escola particular e a distância, logo o aluno estudava sem poder ter o professor presencialmente, um curso a distância.

Marlene e Eunice recorreram aos préstimos da Empresa de Correios e Telégrafo, mas mesmo assim tiveram que  superar uma outra grade dificuldade, qual seja, a de morarem na zona rural. Na zona rural os Correios não entregavam as correspondências nas casas dos destinatários - tal privilégio só era concedido a quem mora na cidade. Aliás até os  dias atuais ainda é assim que as coisas funcionam.  A solução adotada por Marlene e Eunice foi a de receberem todo o material numa caixa postal. Reitero que a caixa postal para ter acesso a ela, alguém deve assiná-la  e pagar uma certa quantia, não sei se mensalmente, semestralmente ou anualmente. Felizmente, alguém da Família Ribeiro era assinante de uma caixa postal e, em sendo assim, todas as correspondências destinadas para os Ribeiros eram remetidas pra esta caixa.

Todavia, um outro problema se apresentou, qual seja, em alguns momentos os camponeses, dentre eles, os Ribeiros ficavam vários dias, semanas mesmo, sem virem até a cidade. Em sendo assim, as apostilas enviadas pelo Instituto Universal Brasileiro, por vezes, demoravam muito para chegarem até a Marlene e a Eunice. Mas, apesar de tudo isso, elas foram persistentes, determinadas, não desistiram, foram heróicas e  vitoriosas.

Lembrando que para serem consideradas aprovadas tiveram – exigência feita a todo e qualquer aluno que cursasse madureza ginasial -, fazer uma prova presencial em Dourados, acredito que na Escola Estadual Presidente Vargas, na qual, obtiveram notas suficientes para serem aprovadas. Aliás foram bem avaliadas.

O emocionante do feito destas duas primas é que fizeram isso, sendo duas mulheres, importante reiterar que, para as mulheres até os dias atuais, as coisas são sempre mais difíceis em virtude do machismo reinante na sociedade brasileira, mau do qual, infelizmente, a Família Ribeiro não estava imune. Marlene e Eunice também venceram este obstáculo.

Terminado o curso ginasial, elas não se deram por satisfeitas, vieram para Dourados onde fizeram o curso correspondente ao ensino médio. A Eunice fez o curso normal, a Marlene, não sei dizer, acredito que foi o científico. Vejam o quanto estas meninas foram guerreiras. Eu diria que elas abriram as porteiras para os demais Ribeiros que, pouco a pouco, cada vez mais encorajados com os exemplos delas, e numa perspectiva ascendente, muitos outros Ribeiros resolveram estudar aqui em Dourados, não o curso de madureza ginasial, mas o curso ginasial presencial.

E em meados dos anos 1970, o exame de admissão foi abolido e este fato combinado com o êxodo rural implicou na vinda dos camponeses para a cidade, dentre eles os Ribeiros. Apesar de grandes dificuldades de toda sorte, sobretudo financeira,  a maioria dos primos que moravam em São Lourenço, uma vez morando em Dourados acabaram por fazer o curso ginasial.

Quanto a Marlene e a Eunice, em virtude da persistência e ousadia cursaram o ensino superior, se qualificaram profissionalmente e se incorporaram ao mercado de trabalho, e, escreveram uma história muito sofrida, comovente, porém, com final feliz.

Parabéns primas! Vocês são heroínas

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Assim era o lavrador

Nos anos 1960, 1970 e 1980, quem exercia as atividades agrícolas era denominado de lavrador. Naquele período quase todas as atividades agríc...